O desenvolvimento de um medicamento para a Covid-19 baseado no uso de uma molécula de RNA sintetizada em laboratório, utilizada para inibir a produção de proteínas essenciais para a replicação do novo coronavírus (Sars-Cov-2), é o objetivo de um projeto de pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Elaborada pela professora do Departamento de Ciências Farmacêuticas Tânia Beatriz Creczynski Pasa, que adaptou o método utilizado em suas pesquisas com câncer de mama, a proposta aguarda financiamento para ter início.
A pesquisa utiliza uma técnica chamada de RNA de interferência. Nela, cientistas desenvolvem uma molécula chamada RNA curto de interferência, ou siRNA, que tem a capacidade de interromper a produção de determinadas proteínas em nosso corpo. Para entender seu funcionamento, é preciso, primeiro, compreender a função do RNA mensageiro em nossas células. Pode-se pensar nele como uma espécie de carteiro, que pega a instrução escrita por um gene para a fabricação de uma proteína e a leva até o ribossomo, a estrutura celular responsável pela produção. O siRNA é programado para destruir partes específicas do RNA mensageiro. Ao atacar o carteiro, ele impossibilita que a receita da proteína seja lida pelo ribossomo. Logo, ela não poderá mais ser executada. Esse efeito é chamado de silenciamento gênico.
O que Tânia pretende fazer em seu projeto é utilizar a técnica para interromper a produção de proteínas necessárias para a multiplicação do coronavírus. Os vírus são parasitas obrigatórios do interior celular. Isso significa que não possuem vida própria e dependem das células do hospedeiro para se reproduzirem. “O vírus invade a nossa célula e a utiliza como funcionária para produzir as proteínas para ele. Ele passa as informações, e a nossa célula é que produz as proteínas que ele precisa para viver. Então, o que pretendemos fazer é usar o RNA de interferência para impedir a síntese das proteínas virais. Assim, o vírus não consegue se multiplicar, e, ele não conseguindo se multiplicar, nossas células acabam matando aquele que iniciou a hospedagem, e a gente consegue diminuir a carga viral”, explica a professora.
Para que o siRNA possa chegar em segurança ao seu destino, ele é protegido por uma nanopartícula — uma estrutura microscópica que impede que a molécula seja destruída pelo sistema de defesa do nosso corpo. A solução é biocompatível (não é tóxica para o organismo) e já foi testada em animais de laboratório nas pesquisas com câncer de mama conduzidas pelo grupo de Tânia.
O efeito, como em outros medicamentos a que estamos acostumados, é temporário. As doses e o tempo de tratamento indicados vão depender dos resultados observados no estudo. É importante realçar que, apesar de agir sobre o gene, não há interferência genética. Não é feita nenhuma alteração no DNA ou na estrutura da célula, não há mudanças permanentes. O siRNA existe naturalmente em nosso corpo, é um mecanismo de defesa que as células possuem para impedir algumas reações indesejáveis. “Nós vamos fazer artificialmente um fármaco para funcionar baseado em uma ideia que pegamos da natureza”, esclarece a professora, que destaca a segurança do sistema: “Eu tenho muita tranquilidade de que isso pode funcionar”.
A técnica é promissora, mas, como o Sars-Cov-2 é um vírus muito rápido e muito infeccioso, o grupo trabalha com a hipótese de que talvez somente o fármaco à base de siRNA não seja suficiente para curar uma pessoa infectada. O projeto inclui o estudo de seu uso combinado com outros medicamentos. Mesmo que o tratamento com siRNA não elimine completamente o vírus do corpo, é provável que, ao diminuir a carga viral, ele possa aumentar a eficiência de outros tratamentos que venham a ser utilizados.
Pesquisas com câncer
As pesquisas de Tânia com fármacos à base de siRNA começaram em 2013. Seu grupo trabalha com o câncer de mama triplo negativo — um tipo bastante agressivo —, e já realizou experimentos em células e animais. Foi testada a inibição de proteínas relacionadas a diversas vias metabólicas da enfermidade, e algumas já apresentam bons resultados.
Uma das vias investigadas é a de proteínas que impedem o processo natural de morte celular (apoptose). Chamadas de antiapoptóticas, essas proteínas são responsáveis pela multiplicação indiscriminada de células que leva ao desenvolvimento dos tumores. Em testes com animais, ao combinar a técnica do RNA de interferência com o medicamento usual para tratamento do câncer estudado, os pesquisadores notaram que a dose necessária de medicamento para diminuir o câncer foi dez vezes menor do que a aplicada quando não há o uso do siRNA. Com menores doses, diminuem também os efeitos colaterais (intensos nos tratamentos de câncer) e, consequentemente, melhora a qualidade de vida do paciente.
Tânia salienta que o câncer é uma doença bastante complexa, na qual há muito mais proteínas e vias metabólicas envolvidas do que nas infecções virais. “O câncer é bem complicado. No vírus, a gente acha que é mais fácil de trabalhar, porque tem um número menor de proteínas que são vitais para ele”, afirma.
Financiamento
Para que as pesquisas com o coronavírus tenham início, contudo, é preciso financiamento. O estudo demanda materiais (muitos deles importados) e o pagamento de bolsas para que os pesquisadores possam trabalhar: a ideia é contar com dois pós-doutorandos e um estudante de graduação, bolsista de iniciação científica. Tânia enviou projetos para editais do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc) e da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc), além de fazer parte de projetos enviados em grupo por diversos professores de seu departamento à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e ao Ministério Público do Trabalho. Ela aguarda as respostas.
Outro empecilho é a falta de um laboratório com nível de biossegurança 3 (NB-3) na UFSC, o que impede a realização de estudos com o SARS-CoV-2. Esse é um laboratório altamente controlado, com uma série de equipamentos que garantem a segurança dos estudos com micro-organismos que apresentam elevado risco de contaminação. “Esse problema é que nós vamos ter que sanar primeiro, antes de começar a fazer os experimentos, mas há coisas que podem ser feitas em paralelo. Por exemplo, eu preciso desenhar todos os RNAs, preciso encomendar, montar e adquirir os materiais”, comenta a professora. Ela menciona ainda o trabalho conjunto de um grupo de docentes para buscar recursos para adaptar ao menos um dos laboratórios da Universidade para o nível de biossegurança necessário.
Tânia ressalta, no entanto, que, mesmo que não consigam resolver o problema da falta de laboratório, trabalha com algumas alternativas para dar seguimento ao estudo. Parcerias com pesquisadores de outras universidades do país, que possuem laboratórios adequados, são uma possibilidade. Ela também solicitou financiamento para um projeto de desenvolvimento de um pseudovírus — um modelo criado em laboratório para simular o efeito do agente infeccioso. “Assim como o vírus usa nossas células para produzir proteínas para ele, nós vamos fazer uma mutação na célula para que ela faça uma proteína do vírus. Aí, eu posso testar as coisas nessa proteína sem estar me expondo ao vírus”, esclarece. Caso o modelo tenha sucesso, pode colaborar para o estudo não só do coronavírus, mas também de outras espécies que eventualmente possam surgir. “São coisas que a gente vai inventando, criando para poder estudar, sempre tentando se proteger e simplificar o sistema para poder trabalhar na bancada”, complementa a professora.
Fonte: Notícias da USFC
As informações e sugestões contidas neste blog são meramente informativas e não devem substituir consultas com médicos especialistas.
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