quarta-feira, 17 de junho de 2020

As informações e sugestões contidas neste blog são meramente informativas e não devem substituir consultas com médicos especialistas. É muito importante (sempre) procurar mais informações sobre os assuntos.

Por: Dr. Gilberto Amorim



Recentemente, inúmeros sites de notícias importantes dentro e fora do nosso país revelaram que uma vacina contra tumores de mama e de ovário estará disponível em oito anos. "É razoável dizer que poderíamos ter uma vacina dentro de oito anos que pode estar disponível para os pacientes em farmácias e consultórios médicos", disse o Dr. Keith L. Knutson, Ph.D., da Mayo Clinic, à revista Forbes. As reportagens ressaltam que mais testes são necessários e que estes devem ser iniciados em três anos. Uma equipe da Mayo Clinic criou uma vacina contra o câncer de mama triplo-negativo (15% casos) e outra contra o câncer de mama HER2 positivo (15% dos casos), e em breve teriam uma vacina contra o carcinoma ductal in situ.
A ideia obviamente não é nova, a intenção é estimular o sistema imunológico do corpo a eliminar as células do câncer ou evitar que células se transformem no fenótipo maligno.
Diante do furor das redes sociais e do frenesi em torno do assunto, fui pesquisar mais a respeito. Eu achei que algum artigo novo efetivamente tivesse sido publicado, mesmo que apenas com resultados preliminares, mas nenhum site citava a publicação. A primeira coisa que fiz foi buscar pelo nome do pesquisador, que realmente é da Mayo Clinic e, de fato, tem uma longa carreira voltada para o desenvolvimento de vacinas. Em seguida fui para o PubMed onde verifiquei suas últimas publicações.
A última publicação deste autor relacionada com o tema é: The evolving clinical landscape for dendritic cell vaccines and cancer immunotherapy .
O trabalho descreve a longa jornada das vacinas de células dendríticas, que vêm sendo testadas desde o final dos anos 90. Os resultados preliminares positivos não tiveram prosseguimento com os estudos em larga escala. Vários motivos são especulados pelos autores, mas acredito que a imunossupressão de pacientes metastáticos com doenças avançadas (pacientes típicos de estudos de fase 2 e 3 para avaliação de novos tratamentos) possa ter comprometido o avanço dessas pesquisas.
Com a chegada da moderna imunoterapia – inicialmente para tratar o melanoma e posteriormente inúmeras neoplasias –, a melhor compreensão de quais antígenos são imunogênicos, o conhecimento e o entendimento do papel dos correceptores CTLA-4/PD-1/PD-L1 nas células tumorais ou nos linfócitos que infiltram os tumores, e o advento dos inibidores desses correceptores, conseguindo reverter a imunossupressão induzida pelas próprias células tumorais e impedindo que o sistema imune do paciente ataque o tumor, trouxeram uma nova "luz" para os estudos com vacinas de células dendríticas.
A única vacina aprovada pela Food and Drug Administration (FDA) norte-americana (lá em 2010) é contra o câncer de próstata (Sipuleucel-T), na qual leucócitos periféricos são tratados com uma proteína de fusão composta de antígeno prostático e fosfatase ácida prostática, combinada com fator de crescimento de granulócitos e macrófagos (GM-CSF), promovendo a diferenciação de precursores de monócitos em células dendríticas. Esta estratégia resultou em aumento da sobrevida global, mesmo em casos de câncer de próstata metastático resistente à castração.
Nos últimos anos, passamos a entender a importância da carga mutacional inerente aos diferentes tipos de tumores, e hoje já sabemos que subtipos com carga mutacional alta são os tipos tumorais que mais se beneficiam com a imunoterapia. Não surpreende, portanto, o sucesso da imunoterapia em casos de melanoma, carcinoma renal, câncer de pulmão, entre outros tumores com a "carga mutacional" habitualmente alta. Essa estratégia pode ser extrapolada para a vacinação de células dendríticas, já que mais e mais neoantígenos são reconhecidos e hoje podem sem identificados por NGS (do inglês new generation sequencing, ou sequenciamento de nova geração) e trabalhados em laboratório.

No câncer de mama, os tumores triplo-negativos, e em alguns casos os HER2+, podem ter carga mutacional alta, e independentemente deste fator, este ano tivemos a aprovação (em Estados Unidos, Europa e Brasil) do atezolizumabe, primeira imunoterapia (anti PD-L1) a comprovar resultados positivos em combinação com quimioterapia em pacientes metastáticos triplo-negativos, mas tão somente aquelas com a presença de PD-L1 positivo nos linfócitos que infiltram o tumor (ou a metástase).
Mais recentemente, foi revelado na reunião anual da European Society for Medical Oncology (ESMO 2019) que o pembrolizumabe em associação com a quimioterapia antes da cirurgia de câncer de mama aumentou a chance de resposta patológica completa.
Voltando ao tema "vacinas contra o câncer de mama", eu pesquisei o assunto no ClinicalTrials.gov, um banco de dados de ensaios clínicos com financiamento público e privado realizados em todo o mundo, e não encontrei nenhum estudo em andamento em que o Dr. Keith seja o primeiro pesquisador. Encontrei cerca de 200 estudos finalizados ou em andamento cruzando câncer de mama e vacinas, a maioria com um número mínimo de pacientes. Em andamento há menos de 40 estudos, nenhum de fase 3; seis finalizados, mas sem resultados; 14 de fase 2; muitos de fase 1. E é interessante que muitos desses estudos são com imunoterapia associada.
Resumindo, não há nenhuma vacina aprovada ou mesmo em vias de ser aprovada contra o câncer de mama. É "honesto" especular – mas um pouco futurista ainda – que em oito anos possamos ter vacinas aprovadas e sendo comercializadas contra o câncer de mama triplo-negativo ou HER2+, mas temos de ser responsáveis na divulgação das informações, para não criarmos expectativas fora da realidade.
Estas matérias sobre vacinas contra o câncer de mama estão quase na mesma linha tênue entre notícia científica relevante e criação de "expectativas irreais", como ocorreu com a divulgação do primeiro caso de terapia de células T CAR, um tratamento inovador apresentado na semana passada para um caso de linfoma refratário. É fantástico que uma universidade brasileira, neste caso a USP de Ribeirão Preto (USP-RP), atendendo pelo Sistema Único de Saúde (SUS), tenha material humano para desenvolver essa linha de pesquisa tão sofisticada, e a um custo muito menor que os "bizarros" 478 mil dólares (!!) do tisagenlecleucel, medicamento que foi aprovado pela FDA. Mas essa estratégia de tratamento requer mais ensaios clínicos, muito investimento e muita qualificação dos serviços de onco-hematologia (inclusive das unidades de terapia intensiva) e mais pacientes, não só em linfomas e leucemias refratários mas, quem sabe no futuro, em tumores sólidos, se conseguirmos identificar antígenos "relevantes". A história do paciente é fantástica, mas o paciente foi tratado há menos de dois meses, e foi um caso único.
A parte positiva dessas reportagens é o fato de elas chamarem atenção para o nível da medicina e da ciência sendo praticadas no Brasil e, quem sabe assim, atrair mais recursos para esta e outras pesquisas. No entanto, a parte complicada é que quem está doente ou tem um ente querido doente muitas vezes manifesta grande ansiedade e até desespero, e este tipo de divulgação pode gerar falsas expectativas ao sugerir que "já já" essas terapias estarão disponíveis no mercado. Sabemos que não é tão simples assim.
Como médicos e cidadãos devemos sempre checar as informações com o maior embasamento científico possível antes de compartilhá-las, e precisamos estar preparados para as crescentes demandas dos pacientes e de seus familiares a partir dessas reportagens. E olha que nem estou falando de fake news!

As informações e sugestões contidas neste blog são meramente informativas e não devem substituir consultas com médicos especialistas.

É muito importante (sempre) procurar mais informações sobre os assuntos.

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