domingo, 22 de abril de 2018

Na reconstrução, um recomeço

Procedimento reconstrutivo da mama devolve a autoestima e a confiança a pacientes que se submeteram a mastectomia


Foto Divulgação

Tudo começou com um pequeno nódulo que surgiu na mama após o término do período de aleitamento materno. “Na época, achei que era leite empedrado e ficou por isso”, conta a auxiliar de serviços gerais, Franciele Miranda. De lá para cá, tudo mudou na vida dela. O tumor maligno diagnosticado em 2016 afetou a rotina da jovem de 25 anos, que, além de conviver diariamente com o desconforto na mama, ainda enfrenta o abalo e o medo característicos do período de enfrentamento de um câncer. No caso dela, a mastectomia – retirada completa da mama - é o procedimento indicado para o tratamento da doença. Enquanto aguarda a definição da data para a cirurgia, ela encontra, no trabalho e no amor pela filha, a motivação para afastar os pensamentos negativos e acreditar que, apesar de difícil, essa é só mais uma batalha a ser vencida.

O percurso até a descoberta do tumor não foi menos complicado. O nódulo, que foi aumentando de tamanho com o tempo, ficou em segundo plano, até que as dores no uso do sutiã acenderam o alerta. Desde então, a Franciele passou por alguns procedimentos até a descoberta do diagnóstico, entre eles a punção – procedimento médico que consiste na aspiração do conteúdo do nódulo mamário através do posicionamento de uma agulha em seu interior.  “Quando chegou o resultado dos exames e da biópsia, eles indicaram que era um tumor maligno. E foi aí que começou todo o sofrimento, porque quando alguém fala em maligno, logo tu pensa: eu vou morrer. Acho que é a primeira coisa que passa na cabeça de todo mundo. Aí, o médico disse que eu tinha duas possibilidades: passar novamente por toda aquela sequência de tratamentos ou então retirar a mama inteira e resolver o problema. Eu escolhi resolver o problema de uma vez, porque é mais sofrido do outro jeito. Já estou aguardando a data da cirurgia”, conta.

Diferentemente do caso da Franciele, que é bem jovem, o câncer de mama é mais incidente na faixa etária dos 50 aos 60 anos de idade. Entretanto, segundo o mastologista do Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), Dr. Leandro Pacheco, estudos recentes voltados à análise do câncer de mama no Brasil indicaram que 50% das pacientes com a doença estão na faixa dos 40 ou 50 anos, evidenciando um perfil mais precoce de surgimento da patologia. “As pacientes mais novas, com menos de 50 anos, são todas orientadas a fazerem uma avaliação genética. Mesmo assim, só 5% terão uma mutação genética, semelhante à que a atriz Angelina Jolie declarou ter alguns anos atrás. Se formos ver o Rio Grande do Sul, que é o segundo estado com maior índice de câncer de mama, somente atrás do Rio de Janeiro, isso tem a ver com estilo de vida: alimentação, obesidade, sedentarismo, estresse, gravidez tardia, exposição a hormônios. Dificilmente, o diagnóstico do câncer de mama em uma paciente indicará um fator de risco isolado. Normalmente, é multifatorial”.

A decisão pela mastectomia leva em conta uma série de elementos, tendo como principal critério o estabelecimento de uma doença que justifique essa abordagem. “A retirada da mama, normalmente, ocorre quando o que se tem de lesão se torna desfavorável para fazer uma cirurgia conservadora, ou seja, preservar a mama. Isso acontece, por exemplo, se tiver uma proporção de retirada de tecido mamário superior a 20% do tamanho da mama, aí será preciso a mastectomia. Quando há lesões em vários locais da mama também há essa indicação, assim como nos casos em que a paciente não tiver acesso ou houver alguma contraindicação à radioterapia, já que sempre que a mama é preservada é preciso utilizar esse tratamento radioterápico. Ou quando ela tem o que chamamos de microcalcificações suspeitas espalhadas em toda a mama, todas essas são algumas das indicações para a mastectomia”, explica o médico.

O diagnóstico precoce é um grande aliado para prevenir a abordagem mais drástica no tratamento do câncer de mama. Por isso, a importância da realização dos exames preventivos e da busca pela consulta médica assim que a mulher notar qualquer sinal de anormalidade. “A mastectomia se dá muito devido ao diagnóstico tardio. Temos dois perfis de pacientes: aquela que vai ao consultório privado e que, salvo em raras exceções, conseguimos realizar uma abordagem mais conservadora, porque ela descobre a doença cedo. E temos a paciente que busca o atendimento pela rede pública de saúde e que, geralmente, faz isso quando a lesão já está maior e mais avançada, o que acaba levando à mastectomia, muito embora, hoje, o tempo de espera no nosso ambulatório do SUS seja pequeno, em cerca de 15 dias a paciente já consegue a consulta”, elucida.

A situação da Franciele, assim como de tantas outras que enfrentam a doença, demanda coragem. Não só pela necessidade de se submeter a um procedimento cirúrgico, o que por si só já gera certo receio, mas há todo o contexto gerado por uma mudança que está diretamente relacionada à qualidade de vida da mulher. “Eu não estava pronta para passar por isso, acho que ninguém está. Não é por ser um pedaço meu que vai ser tirado, mas eu acho que a gente fica pensando várias coisas, tem mais aquele sofrimento de esperar o resultado da biópsia ou saber o tipo de tratamento pelo qual eu vou ter que passar depois, eu me preocupo com tudo isso, desde questão do meu trabalho até se eu vou poder continuar com as minhas atividades depois. Passa tudo pela minha cabeça. Por isso, eu procuro ficar ocupada o tempo todo, só vou deitar quando estou o mais exausta possível, justamente para não ficar pensando nisso, porque é bem sofrido. Chego em casa e procuro coisas para fazer, faço até o que não precisa. Procuro focar no meu trabalho, como se nada tivesse acontecido, que para mim é melhor”, relata.

A mastectomia, além de uma conduta mais agressiva, também representa um abalo na autoestima feminina. De acordo com a psicóloga Paula Queiróz, que atua como terapeuta familiar, a mama é uma das partes mais femininas do corpo da mulher e, por consequência, possui um valor psicológico muito agregado. “Quando nascemos, construímos ao longo dos anos a imagem que temos do nosso corpo. Portanto, a retirada da mama é, além de um impacto emocional gigante para a mulher, um impacto social, pois nós, enquanto sociedade, ainda lidamos de forma desconcertada com essa situação. Ao retirar a mama, a imagem que a mulher tem do seu corpo fica desconfigurada, pois ela, em algum momento, não reconhece esse corpo diferente. Ao passar por todo esse processo, é inevitável que a mulher tenha dificuldades emocionais para lidar com tamanha mudança, mas não quer dizer que ela passará por todo o processo com essa dificuldade”, frisa.

A possibilidade de uma nova vida

A reconstrução mamária é uma possibilidade buscada pelos médicos sempre que a mastectomia é necessária, pois, a partir dela, a mulher consegue recuperar parte da sua autoestima e a aceitação ao tratamento é melhor quando há essa reparação. “Na grande maioria das vezes, quando indicamos a reconstrução, tentamos fazer no mesmo momento cirúrgico da mastectomia. Dentro das possibilidades, optamos por uma técnica que permita a reparação imediata. Quando a paciente sai da cirurgia com a mama já reconstruída, isso está provado, ela tem uma recuperação de 20% a 30% melhor do que aquela que é mastectomizada sem a reconstrução”, ressalta o Dr. Leandro Pacheco.

Contudo, na rede pública de saúde, essa é uma realidade que ainda está distante da maioria das pacientes que se submeteu à retirada da mama. Um estudo realizado por pesquisadores da Rede Goiana de Pesquisa em Mastologia revela que das 210 mil mulheres que realizaram cirurgias de câncer de mama no Brasil entre 2008 e 2015, quase 44% (92,5 mil) fizeram cirurgia de mastectomia. Dessas, apenas 18 mil (20%) tiveram suas mamas reconstruídas pelo SUS, o que é considerado pela Sociedade Brasileira de Mastologia como um cenário alarmante, já que tantas mulheres vivem mutiladas há anos aguardando pela cirurgia - seja por falta de informação, medo, vergonha ou autoestima baixa. Ambos os procedimentos, tanta a mastectomia quanto a reconstrução mamária, são oferecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas algumas instituições enfrentam limitações no que tange à disponibilidade de recursos, que deveriam ser repassados aos hospitais para a realização dos procedimentos.

Por outro lado, nem sempre a reconstrução é possível de forma imediata. Conforme o mastologista, isso ocorre, por exemplo, nos casos em que a paciente necessita realizar radioterapia após a retirada da mama. “Nesse cenário, é interessante que o tratamento radioterápico seja feito antes da reconstrução mamária. Se a paciente tiver algum problema clínico ou não tenha condições físicas que a impeçam de fazer a reconstrução naquele momento, já que é uma cirurgia muito mais extensa, com tempo cirúrgico grande, teremos que proceder com a reparação em um segundo momento”, esclarece. É preciso considerar, igualmente, que a escolha sobre realizar a cirurgia reconstrutiva, nos casos em que ela é possível, passa também pela paciente, que, por motivos pessoais, pode preferir ser submetida apenas aos procedimentos necessários ao tratamento do câncer de mama. “Temos sempre que respeitar o desejo da paciente”, reforça o médico.

Há diferentes tipos de cirurgia reconstrutiva e ela será adequada às condições de cada paciente. O procedimento pode ser realizado com uma prótese ou com tecidos do próprio organismo: a escolha da técnica cirúrgica dependerá, no caso do câncer de mama, do estágio da doença e também dos tratamentos realizados anteriormente pela paciente. Independentemente da técnica utilizada, uma coisa é certa: há um salto de qualidade de vida na paciente depois que é feita a reconstrução. Segundo a psicóloga Paula Queiróz, o procedimento acarreta em inúmeros ganhos à vida da paciente. “Se você conversar com mulheres que já passaram por esse processo, ouvirá que, em alguns momentos, elas ganharam muitas coisas, como: afeto verdadeiro de alguém especial, conexão maior com seu eu, reflexão mais nítida sobre suas emoções, conheceu pessoas em outros processos de dores, ou seja, essas trocas emocionais fazem parte de uma construção ou atualização dessas mulheres. Assim como a reconstrução mamária, ela terá um importante valor na sua autoestima”, aponta.

Um ponto de equilíbrio

Nesse momento de apreensão, o apoio da família e o suporte psicológico são essenciais para a paciente. É justamente no âmbito afetivo que a Franciele encontra o alicerce indispensável para manter a confiança e o otimismo frente a um cenário marcado por incertezas. “Às vezes, a minha filha de nove anos me vê e começa a chorar. Esses dias, ela me perguntou se eu ia voltar para casa depois da cirurgia. Para mim, é mais complicado por conta dela. Eu acho que todo mundo tem que ter uma motivação, ainda mais nos momentos difíceis, então eu foquei nela, no que eu tenho que fazer, que eu tenho que melhorar e seguir trabalhando depois, porque ela precisa de mim”.

Além da rede de apoio, composta por familiares, amigos e até mesmo a equipe que irá acompanhar a mulher durante o tratamento, a orientação de um psicólogo pode auxiliar a transformar um momento de dor e sofrimento em uma oportunidade de aprendizagem e amadurecimento emocional. “Todo câncer é um motivo de alguma dor, psicológica e física, seja ele benigno ou maligno, pois vai refletir diretamente na vida dessa pessoa. O suporte psicológico é de extrema importância, tanto quanto a rede de apoio dessa mulher. Ter um acompanhamento psicológico durante todo o processo do câncer é umas das melhores formas de refletir sobre questões deixadas de lado por anos, sobre as emoções frente às adversidades da vida e como isso tem refletido na saúde. É imprescindível que a mulher tenha a quem recorrer nos momentos de fraqueza, nas horas difíceis, nos dias nublados desse percurso doloroso. O apoio psicológico trabalha como uma rede de apoio, podendo interagir com os demais membros dessa rede, dando assim um suporte rico”, salienta a psicóloga Paula Queiróz.

O maior medo da Franciele é sobre o que vem após a cirurgia – algo bastante comum e perfeitamente compreensível. “Fico pensando no que eu vou ter que passar depois, porque eu sei que se eu tiver que enfrentar alguma complicação, vai ser mais difícil para a minha filha do que para mim. Eu posso sofrer, mas vendo ela sofrer, eu sofro mais ainda. Fico pensando: o que será que vai vir dessa vez?”, questiona. Alguns possíveis resultados já são sinalizados pelos especialistas. Segundo informações da Sociedade Brasileira de Mastologia, há o risco de, mesmo com os cuidados pós-operatórios, a paciente perceber uma diferença na sensibilidade da mama reconstruída ou até sentir desconforto na região, entre outros sintomas que variam de uma mulher para a outra. Independentemente do que o futuro reserva, a Franciele carrega uma certeza. “Sei que o que eu tiver que passar, eu vou passar, porque sempre vou encontrar na minha filha a força que eu preciso”, finaliza.


Fonte: Diário da Manha


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