Luiza Polessa (Foto: Reprodução/ Facebook)
Sou formada em Letras, fiz mestrado em Literatura Brasileira pela UFRJ, sempre gostei de escrever. Mas me interessei pela psicologia transpessoal, fiz uma formação e, como já tinha curso superior, comecei a atender. Logo queria atender a outras demandas, trabalhar com outras técnicas, e estava ligada a uma linha que não me habilitava para isso, então fui fazer faculdade de Psicologia e me formei em 1998.
Desde 1990, já fazia parte de um grupo de estudos ligado à psicologia transpessoal, e nós trocávamos casos, discutíamos. Um dia, em 2001, uma amiga ginecologista e obstetra levou a divulgação do curso de especialização em Psico-Oncologia. Era a primeira turma desse curso no Rio de Janeiro. Já existia em São Paulo, eu já tinha tido interesse em fazer, mas nunca conseguia me organizar para ir fazer, porque era um curso de dois anos, tinha que fazer estágio, naquele momento minha vida profissional não comportava esse investimento.
Exatamente na semana do encontro do grupo, eu tinha recebido cinco pessoas relacionadas a questões oncológicas, entre pacientes e familiares. Sempre tive uma demanda muito voltada para a doença em geral, foi acontecendo, mas depois começou a se definir para a oncologia. Eu até pensei: “Não estou recebendo isso à toa e você não está divulgando isso à toa.” Comecei a fazer o curso e me filiei à Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia. Então recebi o título de especialista em Psico-Oncologia em 2002, mas já trabalhava com pacientes oncológicos há mais tempo. A minha vida profissional foi naturalmente se conduzindo para esse lado.
A psico-oncologia tem foco nas questões relacionadas ao câncer, mas o sofrimento psíquico é trabalhado como em qualquer questão que envolva doença ou algum conflito, pode ser uma separação, um trauma, um momento de crise nas relações familiares... As técnicas são empregadas sempre, é que com o paciente oncológico o profissional se volta para a questão: os casos, os tipos de tumor, manifestações emocionais que os tratamentos causam, a adesão ao tratamento — porque são agressivos, então há uma tendência a não levar adiante —, coisas específicas.
Não é todo profissional que trata um paciente de câncer, ainda mais agora, tendo a especialização. Em geral, eles até encaminham [para um especialista], até porque ele passa por várias etapas. Tem o momento da investigação do diagnóstico, o momento em que ele recebe o diagnóstico, em que fica muito desorientado, não sabe como se conduzir, onde vai se tratar, tem a questão se tem plano de saúde ou não, qual o melhor lugar. É o mais impactante mesmo, e depois vêm os tratamentos, que são uma etapa muito longa e a pessoa tem vários sintomas, fica com a vida muito comprometida, a pessoal, incluindo a sexual, a profissional. Ele pode terminar o ciclo aí. Às vezes, vem recidiva, e a pessoa entra nos cuidados paliativos e nos de final de vida.
Eu fazia meus exames pedidos pelo ginecologista anualmente e, em 2002, fui fazer mais uma vez. Era a mesma radiologista sempre, porque ele só indicava ela. Daquela vez, foi diferente. Ela pegou os meus exames anteriores e começou a comparar com o novo. Antes mesmo que ela falasse alguma coisa, dava para ver que ela não se conformava que de um ano para o outro eu estivesse com um diagnóstico diferente. Antes mesmo dela terminar, eu já sabia o resultado não era bom. Ela me mandou direto para o médico: ligou para ele, que ela amigo dela, eu fui e ele me encaminhou para o mastologista, que já falou que iria fazer punção e a core biópsia, porque tinha que ver o tipo de tumor e o tipo de cirurgia que precisava. E completou: “Eu não tenho nenhuma expectativa de que não seja câncer.”
Foi um choque. Eu tinha 50 anos, sempre me cuidei superbem, cuidava da alimentação, não fumava, não bebia — como não bebo e não fumo até hoje (risos) —, não tinha nenhum caso na família de câncer de mama... Foi um choque para todo mundo. Eu tenho uma filha, três irmãs e duas sobrinhas, sou casada. Só pensava neles. Ficou aquele pânico. Fiquei muito assustada. Por um tempo, apaguei a informação de que realizar regularmente exames preventivos não impede a doença de se manifestar, embora possibilite o diagnóstico precoce. Depois, vieram a tristeza, o medo, as dúvidas. O tratamento do câncer de mama é longo, e o percurso, acidentado.
Por causa do diagnóstico precoce, eu não fiz quimioterapia: fiz cirurgia, radioterapia e cinco anos de hormonioterapia. A químio tem sintomas mais violentos e mais visíveis. A rádio tem uma agressão mais a longo prazo, como a fadiga, por exemplo. Embora não seja tão agressiva quanto a químio, ela não é nenhum mamão com açúcar. Além do cansaço, ela compromete a imunidade. Eu tive um herpes zoster violentíssimo, e por causa disso desenvolvi paralisia facial.
Mas em nenhum momento me faltaram esperança e coragem. Ter uma rede de apoio efetivamente suportiva torna mais amena a jornada. A dor de todos os envolvidos foi intensa, mas agregadora. Choramos juntos e brindamos juntos cada etapa vencida. Também espiritualmente não me senti em nenhum momento desamparada. Meu marido é médico, o que ajudou muito, porque ele fazia os curativos, ia a todas as consultas comigo, como vai até hoje. A radioterapia é diária, então a gente se revezava: um dia na semana ele ia e nos outros amigos, familiares, cada dia um me levava. Na casa, nas coisas do dia a dia, na própria questão médica: ele acompanhava e me tranquilizava.
A mulher com câncer é afetada de uma forma muito própria, mas também toda família vivencia situações novas que exigem redefinições de papéis, de postura e de mudanças na dinâmica familiar. Comigo não foi diferente. Sou muito envolvida familiar e socialmente, além da intensa atividade profissional que exerço. Minha família, por uma necessidade de se proteger do intenso sofrimento por que atravessava, inicialmente negou minha doença e tentou reforçar a importância que teria para mim manter a rotina de relações e de papéis, atitude que foi se modificando com o curso do tratamento. Mas a maior dificuldade foi mesmo minha. Queria manter tudo mais ou menos como era antes, numa tentativa de controlar o imponderável, mas logo vi que era incompatível com algumas lições que a doença trouxe para a minha vida.
A primeira vez que senti a mudança foi quando houve uma situação familiar muito delicada e eu não fui envolvida na tomada de decisão. Talvez pela profissão, ou por características de minha personalidade, sempre era solicitada a participar de decisões familiares. Embora tenha inicialmente me abalado com essa mudança, logo me dei conta de que era isso mesmo, eu não precisava, e, naquele momento, nem era indicado ter certos envolvimentos. Eu precisava me preservar e outros familiares tinham total condição de conduzir o que fosse preciso.
Sabemos que mudanças estão presentes em nossos vários ciclos vitais, mas, quando são impostas por uma doença, trazem conflitos, que se não elaborados podem comprometer o equilíbrio, relativo, de nossas vidas. Estabelecer limites para mim e para os outros ainda é um desafio. A conquista é diária. Estar do lado de quem é cuidada, e não do de quem cuida, foi uma experiência difícil e rica de aprendizados.
Os tratamentos oncológicos são responsáveis por muitas mudanças no corpo da mulher. A mastectomia, alopécia (queda dos cabelos), linfedema (acúmulo de líquido que causa inchaços), emagrecimento em alguns casos, sobrepeso em outros, as alterações hormonais, as disfunções sexuais... Algumas mudanças são transitórias. Outras, permanentes. É necessário buscar ajuda da equipe de saúde para facilitar a adaptação às mudanças e garantir uma melhor qualidade de vida. Duas alterações formam particularmente sofridas pra mim: as mudanças em minha sexualidade, com a perda da libido e o ressecamento vaginal, e a fadiga.
As mudanças acabam por ser mais internas que externas. A vida não deixou de ser corrida, pressões e cobranças não deixaram de acontecer, eventos estressantes não erraram endereço. O que mudou foi a maneira de lidar com as questões. Há dor, mas não há desespero; há tristeza, mas não há conflito. E muito empenho em gerar recursos para que eu possa me socorrer nas solicitações dramáticas da vida. A alegria de viver supera tudo, tudo mesmo.
Em 2008, lancei um livro, Entre nós: depoimentos que revelam o universo de quem convive com câncer (ed. Best-Seller), que, além do meu relato, traz os de familiares, amigos, médicos e pacientes. Foram várias as minhas motivações para escrevê-lo. A primeira diz respeito a mim. Receber o diagnóstico de câncer de mama foi muito impactante. Na busca por uma reorganização interna, escrevia sobre o que sentia, o que vivia. Escrever tem uma função curativa em minha história. Tem um efeito transforma-dor. Na medida em que escrevo, sinto-me menos descoberta.
E veio o cuidado com familiares, amigos. Foi quando pedi que escrevessem sobre o que era para eles caminhar ao meu lado na estrada longa e sofrida do câncer. Escreveram belíssimos depoimentos. Mostrar o meu trabalho profissional foi outra motivação. A partir dos escritos das próprias pacientes, fui tecendo questões presentes no mundo específico do câncer. E, por fim, o foco vai para o leitor. Para quem convive direta ou indiretamente com o câncer, dialogar com tantas histórias, tantos sentimentos e saber o quanto de vida existe no universo do câncer foi a contribuição que vi ao meu alcance.
Já era casada há 25 anos quando tive câncer. Oficializar o casamento nunca fez parte dos nossos planos. Só que a experiência da doença muda muita coisa em nossa vida. Para meu marido, diante da possibilidade de minha morte, ele não se reconheceria solteiro, e sim viúvo. Para legitimar um estado de alma, um estar no mundo solitário, chegamos ao casamento. A cerimônia foi um ano e meio depois da cirurgia. Foi linda! Permanecemos unidos e felizes, há 41 anos.
Recebi da Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia a Certificação de Distinção de Conhecimento na Área da Psico-Oncologia e no site da sociedade aparece meu nome. Acho que por isso também muitas pessoas me procuram. Depois de ter passado pelo câncer, minha forma de lidar com as pacientes mudou. O feeling ficou mais aguçado. Ninguém passa impune pela experiência do câncer. Ser uma curadora ferida imprimiu ao meu trabalho muita largueza. A experiência é singular. Ninguém adoece da mesma maneira, ainda que da mesma doença, mas ter tido câncer expandiu minhas habilidades profissionais e pessoais. Ter a referência do que significa a busca pelo fio que atravessa o vácuo em direção ao reencontro consigo mesmo faz de mim uma profissional cada vez mais atenta, cuidadosa, investida e responsável.
O câncer também me aproximou muito da minha família e amigos. Com a doença, você tem uma dimensão da finitude muito maior. Não tem mais aquela coisa que está muito longe (risos), pode ficar muito perto de repente. É claro que a gente pode ser atropelado, sair, bater com o carro. Mas não pensamos nisso no dia a dia. Também ia ser muito cruel... Mas, a partir do momento que você tem uma doença potencialmente letal, se dá conta de que pode morrer a qualquer momento, e a vida as relações ganham um outro sentido. Hoje vivo como antes: trabalho, viajo, tenho uma vida plena. Não tem mais essa coisa de 'tenho todo o tempo para realizar isso' ou 'ah, quando eu puder eu me reconcilio', 'vou dar um tempo nessa relação', isso não existe mais. Você vai dar que tempo? Acho que me tornei uma pessoa melhor, mais atenta, mais investida, mais consciente do papel que eu ocupo para mim, na minha vida, na vida das pessoas. Sinto um desejo de ser uma pessoa melhor, de acertar mais, errar menos."
Fonte: Marie Clarie
As informações e sugestões contidas neste blog são meramente informativas e não devem substituir consultas com médicos especialistas.
É muito importante (sempre) procurar mais informações sobre os assuntos
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