sábado, 19 de outubro de 2019

Será que possuímos uma imunidade inata contra o câncer?

Em algum nível, sim, e novas terapias podem impulsionar as respostas naturais ao organismo contra o câncer

O estudo da imunidade ao câncer tem sido um desafio global desde que William
Coley tratou pacientes com sua toxina epônima no final do século 19. À medida que nossa compreensão do sistema imunológico evoluiu, seu papel na luta contra o câncer tornou-se cada vez mais aparente. Houve alguns marcos monumentais que ajudaram a moldar o tratamento do câncer tal como é hoje, incluindo os ensaios de linfócitos infiltrantes de Steven Rosenberg na década de 1980, a cura de leucemia por Hans Kolb, usando células T de doadores nos anos 90, e a descoberta do bloqueio do ponto de checagem que levou ao recente Prêmio Nobel de Jim Allison e à explosão do campo da imunoterapia.


O foco na imunoterapia nos coloca em risco de esquecer que o principal papel do sistema imunológico é a vigilância do tumor: a eliminação de doenças ainda em desenvolvimento, antes mesmo de estarmos conscientes do perigo. O câncer surge do crescimento descontrolado de células tumorais, que evitam a vigilância imunológica e, como tal, as imunoterapias destinam-se a restaurar as respostas naturais ao organismo contra o câncer. No entanto, apesar de alguns resultados inovadores, as imunoterapias atuais permanecem eficazes apenas para uma minoria de pacientes.

O motivo é que a maioria dessas terapias visa apenas um dos dois lados do sistema imunológico, a resposta adaptativa, e não a resposta inata. No entanto, muitos imunoterapeutas estão começando a entender que ampliar nossas opções terapêuticas para direcionar também a resposta inata dará aos pacientes a melhor chance de vencer a doença.

A imunidade adaptativa, também conhecida como imunidade adquirida, é uma resposta imune específica para o antígeno, que pode matar células cancerígenas e gerar uma memória imunológica de cada antígeno relacionado ao tumor. Isso cria um reservatório de células imunes capazes de responder às células cancerígenas que expressam o mesmo antígeno específico, caso ele apareça novamente. A imunidade adquirida consiste em linfócitos T e B, que lisam as células tumorais e geram anticorpos para alguns dos antígenos tumorais. O processo de imunidade adaptativa é a base das vacinas, como a vacina contra o HPV, que tem como alvo o vírus responsável pela maioria dos casos de câncer do colo do útero.

Por que a imunoterapia inata é capaz de melhorar os resultados? A imunidade inata é a primeira linha de defesa do nosso corpo contra infecções e câncer. Cerca de 10% dos linfócitos em nossa corrente sanguínea periférica fazem parte da resposta inata, e 95% deles são células do tipo natural killer (NK). Cada uma dessas células assassinas inatas pode reconhecer, visar e matar células nocivas através do reconhecimento de proteínas e glicoproteínas, que são expressas em células “estressadas”, como células tumorais e infectadas por vírus.

Em contraste com as respostas específicas para cada antígeno das células T do sistema imune adaptativo, o sistema inato é relativamente inespecífico e pode fornecer uma resposta rápida. Enquanto alguns dos primeiros ensaios de imunoterapia celular para câncer foram direcionados à imunidade inata, muitos acreditavam que a resposta inata é inadequada para o controle do câncer e redirecionavam as terapias para focar na imunidade “adaptativa” mediada por células T.

Clinicamente, as imunidades inata e adaptativa trabalham em conjunto para nos proteger de infecções e do câncer, embora nossa compreensão da imunidade inata permaneça relativamente fraca em comparação com as respostas adaptativas. Isto é em parte porque a imunidade adaptativa não foi descoberta até a década de 1970, e em parte por causa das dificuldades técnicas em estudar a biologia das células NK em comparação com as células T e B. A importância da resposta inata é aceita em invertebrados, que não possuem imunidade adaptativa, mas é claramente essencial para os seres humanos também.

Células NK humanas são evolutivamente conservadas e compartilham muitas moléculas com células NK de invertebrados, como sanguessugas e ouriços-do-mar. Desde os primórdios da infecção pelo HIV, vimos que os pacientes com um sistema imunológico adaptativo fundamentalmente danificado ainda estavam protegidos por seu sistema imunológico inato e sucumbiam apenas a algumas infecções bacterianas intracelulares e tumores raros. Eles não faleciam de infecções comuns ou tumores descontrolados.

Hoje, temos uma grande quantidade de evidências que apoiam a importância das células NK e da resposta inata na proteção contra o câncer. As células cancerígenas estão constantemente surgindo em nossos corpos como consequência de mutações genéticas aleatórias, algumas das quais dão à célula uma vantagem de sobrevivência ou proliferação. Essas mudanças aleatórias são em grande parte novas e nunca foram apresentadas ao sistema imune adaptativo. As únicas células capazes de detectar os sinais de “estresse” de uma célula tumoral que está se dividindo com muita freqüência são as células NK, que podem eliminar as células tumorais antes que elas se tornem um câncer clinicamente detectável.

Um estudo japonês publicado em 2000 mediu a resposta de células NK em repouso a uma única linhagem de câncer em mais de 3.500 pessoas saudáveis em um único dia de sua vida, e depois as seguiu por mais de 11 anos. Aqueles com a mais fraca atuação das células NK em repouso no único dia em que foram testados tiveram um aumento estatisticamente significativo na incidência de sucumbir a qualquer tipo de câncer durante o período de acompanhamento. A importância da vigilância imunológica inata também é observada em camundongos deficientes em células NK, que geram espontaneamente linfomas malignos.

Longe de ser o parente pobre e pouco sofisticado da resposta imune aquirida, a imunidade inata é fundamental para a sobrevivência. À medida que aumentamos nossa compreensão sobre ela e descobrimos a melhor forma de manipulá-la, veremos avanços ainda maiores na imunoterapia do câncer apenas com as terapias com células NK e, ao lado da resposta imune adaptativa, para combater o câncer melhor do que nunca.

Mark Lowdell



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